Pedalada
Acho que te vi hoje.
Acho que te vi passar na rua pedalando, como se o tempo fosse nada.
Eu encarei o céu depois que você sumiu na rua. Você não sabia que eu estava ali, o que me deixou contente. Por ter te visto, por ser invisível. Era ainda de tarde, mas eu também já via a lua clara no céu pingado de branco.
Ficava escuro e não chovia, pelo contrário, quanto mais escuro ficava, o calor mais tanto subia.
Pela sombra, você dobrou a esquina com um olhar concentrado. O foco do mundo nos olhos do vento. Foi o que me passou pela cabeça.
É um pouco contraditório pensar assim. Fiquei feliz de não ter sido vista, mas feliz por te ver. Mesmo assim eu queria que você me visse, sentisse, virasse, entendesse.
Não precisava nem ter sido ali, pode ser aqui mesmo, agora, nesse instante. Sua voz ambígua, tuas palavras passivas, tua lógica rítmica, seu pedalar espaçado.
Podia ter sido depois, num tempo distante. Podia ter sido só um pouco depois, num tempo mais curto. Podia ter sido nunca, para sempre.
Sabe, eu queria ter gritado por você. Ter chamado, ter te visto mais de perto. Só que você não viria. Nem era pra vir, podia nem ser você. Podia ser você, mas sem ser você. Podia nem existir alguém dando pedaladas seguras em direção ao vento.
Mesmo com todos os motivos para não acreditar, eu pensei por um segundo que podia ser você de verdade. Eu vi o que poderia estar ali e o que não tem lugar num futuro não tão distante, como você vindo em minha direção.
Será que a realidade é mesmo tão distorcida para cada cabeça, cada sentença?
Eu nunca fui muito de analisar o que vem de fala mansa e ritmo agradável. Ainda mais quando vem de muito e muito tempo, além de muito lento pra reclamar com vontade. Não me parece tão ruim ser à parte, compartilhar da arte e não ter que me livrar das pragas que crescem junto aos frutos.
Eu quis chutar as rodas, depois quis andar na garupa. Quis arrancar tua bolsa e derramar tudo na pista para acabar-se em pedaços. Juntar tudo e guardar comigo. Quis gritar perguntas e não ficar pra ouvir as respostas, aguardar a entrelinhas, mais palavras tortas e promessas esquisitas.
Ainda mirava o céu escurecendo e esquentando uma noite cheia de vento, de cima das madeiras do banco na praia. Eu perdi o mar de vista mas não tirei seu vulto da mente. Eu não vi mais as estrelas, mas não conseguia parar de querer saber se era você.
Eu hesitei. Eu desisti. Não esqueci. Fui embora dali com todo o ódio, todo o amor e todo esse filme na cabeça em dois segundos, todo o tempo do mundo numa velocidade constante.
É possível dizem ser falar. Mas agora eu quero mesmo é que hesite menos em hesitar.